quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

INTRODUÇÃO AO EVANGELHO DE MATEUS


Introdução 
As comunidades de Mateus acolheram, reinterpretaram e transmitiram os principais fatos e palavras de Jesus à luz de suas realidades e de sua forma de compreendê-lo. Esse evangelho anuncia que Jesus é a realização das promessas do Antigo Testamento; é o Mestre que nos convida a viver a justiça e a misericórdia.
Ao abrir o Evangelho de Mateus, lemos: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). Desde as primeiras palavras, vemos a preocupação em reforçar a identidade de Jesus como único e verdadeiro Messias. Para as comunidades de Mateus, o Messias Jesus proclama:
  • “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,6-7);
  • “Com efeito, eu vos asseguro que, se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5,20);
  • “Pois, onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20);
  • “Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mt 25,35-36).
Essas frases são exclusivas de Mateus e nos dizem quem é Jesus. Com a fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus, as comunidades de Mateus acolheram, reinterpretaram e transmitiram os principais fatos da vida dele e das palavras que ele deixou à luz de suas realidades e de sua forma de compreendê-lo. Para entender o Evangelho de Mateus, portanto, é fundamental obter algumas informações gerais sobre ele e responder às seguintes questões: Quem o escreveu? O quê e por quê? Para quem? Quando e onde foi escrito?
1. Evangelho de Mateus: data e local de redação
O Evangelho de Mateus é fruto de longo processo. A comunidade juntou, organizou, acrescentou ou modificou as várias tradições orais e escritas das palavras e da prática de Jesus para responder à sua realidade concreta e transmitir sua compreensão dele e do seu projeto.
A forma atual do Evangelho de Mateus surgiu por volta do ano 85 d.C., o que pode ser comprovado com base nos seguintes fatos:
a) Mateus usou como fonte o Evangelho de Marcos, composto por volta do ano 70. O autor relê e reescreve Marcos, abreviando ou acrescentando outros escritos (cf. Mc 6,30-44; Mt 14,13-21).
b) Em Mt 21,41 e 22,7, o autor alude a pormenores concretos da destruição de Jerusalém, a cidade santa, pelo exército romano em torno do ano 70.
c) No decorrer dos anos, com base na experiência e na vivência da comunidade, o Evangelho de Mateus considera, desenvolve e interpreta o desastre nacional como castigo de Deus, causado pelo pecado das elites religiosas ao rejeitar Jesus como Filho de Deus (Mt 24,1-31).
d) O capítulo 23 do Evangelho de Mateus evidencia o forte conflito dessas comunidades com os judeus fariseus (Mt 5,11-12; 10,17-23; 24,9-14). Mas o evangelho não chega a mencionar a expulsão dos judeo-cristãos da sinagoga, o que pode ter ocorrido por volta do ano 90 (cf. Lc 6,22; Jo 9,22; 16,2).
No fim do século I, as autoridades judaicas começaram a intensificar sua perseguição contra os grupos de judeus de tendências e tradições diferentes, especialmente contra os grupos cristãos da diáspora. As comunidades destinatárias do Evangelho de Mateus provavelmente viviam na Síria, em Antioquia. Eis alguns elementos que confirmam essa posição:
a) Em Mt 4,24, o autor relê Mc 1,28.39 e corrige “por toda a Síria”, ao invés de “por toda a Galileia”.
b) Inácio, bispo de Antioquia, martirizado por volta do ano 107 d.C., cita os textos de Mateus em suas cartas (cf. a Carta a Policarpo 2,2 e Mt 10,16b).
c) Até o momento atual, não há provas da existência de sinagogas na Galileia no primeiro século, nem antes desse período. As sinagogas surgiram fora da Palestina, na diáspora.
d) O Evangelho de Mateus atribui um papel importante a Pedro (Mt 14,28-31; 15,15; 16,22-23; 17,24-27; 18,21; 19,27), que atuou na igreja de Antioquia (cf. Gl 2,11-14).
2. Quem escreveu e para quem?

O Evangelho de Mateus é o primeiro livro do Novo Testamento, mas não foi o primeiro a ser escrito. Ele anuncia que Jesus é a realização das promessas do Antigo Testamento. Esse texto, provavelmente, constituiu a base de um conjunto de comunidades cristãs que chegaram até o fim do século II. E, por ter sido posto em primeiro lugar no cânon do Novo Testamento, deve ter sido um evangelho importante para aquele setor do cristianismo que se tornou religião oficial do império romano.
No grupo de Jesus, havia um discípulo que se chamava Mateus, nome que, em hebraico, significa “presente de Deus” e, em grego, é semelhante a mathetés, cujo sentido literal é “aprendiz”. Segundo a tradição da Igreja, o autor do evangelho seria esse Mateus. Pápias, bispo de Hierápolis, cidade da Ásia Menor, por volta do ano 130, atribui ao apóstolo Mateus a composição das palavras de Jesus. A discussão, porém, ainda continua em aberto.
A questão do nome do autor não é tão importante, pois, antes de sua redação final, os evangelhos foram ensinamentos catequéticos, orais ou escritos, sobre as palavras e os atos de Jesus. A forma como o evangelho chegou até nós é obra de um redator que organizou os documentos já existentes e elaborados comunitariamente. No caso de Mateus, o grupo de redatores seriam alguns escribas que no texto recebem destaque e são apresentados como discípulos de Jesus (Mt 8,19; 23,34).
O evangelho foi escrito para as comunidades em que viviam os redatores, provavelmente em Antioquia da Síria, por volta do ano 85 d.C., no fim do século I. Para entender melhor os antecedentes dessas comunidades, é importante relembrar a história dos judeo-cristãos.
Por volta do ano 70 d.C., na Guerra Judaica, os romanos destruíram Jerusalém e o templo. Vários grupos judaicos que participaram da guerra foram massacrados. Os judeus que sobreviveram tiveram de fugir. Algumas comunidades cristãs aí existentes migraram em direção a Pela, no lado oriental do rio Jordão; outras foram para a Fenícia, regiões da Síria, chegando até Antioquia e integrando-se nas comunidades constituídas por judeus da diáspora e de gentios convertidos que existiam nos arredores da cidade.
É nesse contexto que surgiu o Evangelho de Mateus, com o objetivo de animar essas comunidades que, desde a Palestina, seguiam Jesus.
3. Pisando o chão da comunidade de Mateus
Na guerra dos judeus contra o império romano, nos anos 66-73 d.C., Jerusalém e o templo foram destruídos e grupos influentes, como os saduceus, os zelotas, os sicários e os herodianos, desapareceram. A destruição do templo, principal referência para milhões de judeus espalhados no império romano, desencadeou forte crise: e agora, o que significa ser judeu? Sem o templo, o que define o judaísmo? Qual o nosso futuro?
O judaísmo precisava se organizar para sobreviver e garantir sua identidade. Liderados pelo rabi Johanan ben Zakai, os judeus fariseus se empenharam na reorganização dos valores e da crença do judaísmo, tendo como instituição central a sinagoga. Esse grupo conquistou o apoio do império romano, que estava interessado na organização dos judeus fariseus, de sua Lei e suas sinagogas, para controlar o povo judeu. Após a morte de Johanan ben Zakai, as autoridades farisaicas se enrijeceram em torno da Lei e os grupos que não aceitaram a linha oficial foram perseguidos e finalmente expulsos da sinagoga, por volta do ano 90.
Em vários locais, o judaísmo e as sinagogas estavam divididos. De um lado, os judeus fariseus se consideravam o verdadeiro Israel e os intérpretes legítimos da Lei. Exerciam suas atividades nas sinagogas, de onde controlavam o cotidiano do povo, por meio da função de explicar, interpretar e impor a Lei. Acreditavam que a libertação do povo só aconteceria com a estrita observância da lei do puro e impuro (Lv 11-15). As pessoas que não tinham condições de cumprir com todas as exigências da Lei eram consideradas impuras e malditas. O número de pessoas excluídas era grande!
De outro lado, os judeo-cristãos também se consideravam o verdadeiro Israel; eles acolhiam excluídos em seu meio. Os cristãos, que estão por trás do Evangelho de Mateus, fazem a sua proposta de nova interpretação da Lei: “Ide, pois, e aprendei o que significa: ‘Misericórdia é o que eu quero, e não o sacrifício’” (Mt 9,13; cf. Os 6,6). Eles insistem: Jesus morto na cruz, escândalo para os judeus fariseus, é o verdadeiro Messias, Emanuel – Deus conosco –, e o Mestre da lei baseada na justiça e na misericórdia. Por meio da palavra e da ação de Jesus, os judeo-cristãos criticam a sociedade do império romano e dos judeus fariseus, fundamentada no poder opressor.
O conflito entre os judeus fariseus e os judeo-cristãos era grande. Nesse contexto, algumas perguntas pairavam na cabeça de muitos judeus: Quem falava verdadeiramente pelo Deus de Israel? Quem entendia e interpretava com exatidão a Torá? Quem estava capacitado para interpretar o passado e conduzir o povo de Deus ao futuro?
Com base nessas indagações, as comunidades de Mateus acolheram e reinterpretaram os principais fatos e palavras de Jesus à luz de seu contexto e produziram suas próprias reflexões para reanimar seus membros a perseverar no seguimento de Jesus. O movimento de Jesus atravessava forte crise, pois estava em via de separação do judaísmo oficial. Era um grupo minoritário, frágil, oprimido pelo império e pelas autoridades judaicas.
O conflito externo com os judeus fariseus, apoiados pelo império romano, não era o único que as comunidades de Mateus enfrentavam. Havia também os conflitos internos. Essas comunidades eram constituídas em sua maioria por judeo-cristãos, apegados à Lei e às tradições judaicas. Mas nas comunidades havia também os “gentios” e judeo-cristãos helenistas, ou seja, judeus fortemente influenciados pela cultura grega, que tinham uma posição mais aberta em relação à Lei judaica.
Os conflitos eram inevitáveis no dia a dia da vida comunitária. Divergências surgiram na interpretação e no seguimento das palavras e da prática de Jesus; giravam em torno da observância rigorosa da Lei e da tradição judaica, da adaptação ao modo de vida dos “gentios”, da superioridade dos judeo-cristãos em relação aos gentios convertidos, da disputa pela liderança, entre outros (Mt 18,1-11).
Nos conflitos com os judeus fariseus e com o império romano, as comunidades de Mateus tiveram de fortalecer sua identidade e unidade, enfrentando as divergências internas e externas, propondo um diálogo mais abrangente e fraterno. Nessa realidade, o Evangelho de Mateus foi escrito como uma catequese para suas comunidades.
4. Propostas das comunidades de Mateus

O Evangelho de Mateus nasce da resistência de pequenas comunidades de pessoas fiéis a Jesus, sinais da presença salvadora de Deus e de seu reino. Através desse evangelho podemos enxergar comunidades que estão definindo sua identidade. Trata-se de comunidades que estão se fortalecendo para resistir ao controle da sinagoga e do império romano e superar as divergências internas e externas. A volta de Jesus completará a salvação de Deus e estabelecerá o seu reinado sobre tudo.
Eis alguns pontos importantes do Evangelho de Mateus:
a)As comunidades de Mateus acreditam em Jesus como o Messias, em oposição ao messias rei poderoso e defensor da Lei, esperado pelos fariseus (Mt 1,1-2,18). É o messianismo dos excluídos (Is 42,1-9) contra o messianismo do rei (Ez 37,21-28). Ele é o Messias anunciado pelos profetas, e a sua vida e prática eram cumprimento do plano determinado por Deus.
b) Jesus é o verdadeiro intérprete da Lei: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (5,17-18). Jesus é o único e verdadeiro Mestre da Lei (5,1; 23,8). A Lei deve estar a serviço da vida, e não condicionada à lei do puro-impuro (Lv 11-15), que acabou se transformando numa observância mecânica e lucrativa, excluindo muitas pessoas, especialmente os pobres.
c) A prática de Jesus pobre, humilde e misericordioso corresponde à justiça de Deus (11,28-30). Ele vem ao encontro do ser humano, perdoa e salva. A sua prática é baseada no amor e na misericórdia (9,13; 12,7). Uma justiça solidária!
d) A correção fraterna contra o legalismo e o rigorismo da sinagoga (18,23-35). É preciso sair e ir ao encontro da pessoa que errou! Essa comunidade proclama que, em Jesus, Deus está conosco: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (18,20). Sempre: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (28,20b).
e) O Juízo Final e o Reino dos Céus (24-25). O critério de julgamento no Juízo Final é a fidelidade à vontade de Deus. O que o Pai quer é a prática da misericórdia e da solidariedade, oposta à teologia da retribuição. Nesta teologia, a salvação (compreendida como prosperidade, vida longa, saúde e ressurreição) é uma retribuição a quem observa a Lei, visando somente à sua salvação e promoção individual. O Reino dos Céus está presente no meio das pessoas misericordiosas e solidárias e será definitivamente estabelecido por uma intervenção de Deus e do seu Messias. O Reino é fruto da gratuidade de Deus (Mt 13)!
5. Estrutura do evangelho
A estruturação mais comum do Evangelho de Mateus é em cinco livros, com uma introdução sobre as origens de Jesus, os capítulos 1 e 2, e uma conclusão, com a narrativa da sua morte e ressurreição, nos capítulos 26 a 28. Cada um dos cinco livros contém uma parte narrativa e um discurso. Ao todo são dez partes. É uma forma de Mateus relembrar às suas comunidades o Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) e as dez palavras do Sinai ou os dez mandamentos, apresentando Jesus como o novo Moisés.


Visualizando a estrutura:
Introdução (1-2)
– Jesus dentro da história do povo de Deus (1,1-17).
– Jesus: um novo começo dentro de um novo Êxodo (1,18-2,23).
Primeira parte: A justiça do Reino de Deus (3-7)
Narração: Jesus traz o Reino de Deus (3-4).
Discurso: O sermão da montanha (5-7) – condições para entrar no Reino.
Segunda parte: Uma justiça que liberta os pobres (8-10)
Narração: os milagres, sinais do Reino (8-9).
Discurso: A missão (10) – como anunciar o Reino.
Terceira parte: Uma justiça que provoca conflitos (11,1-13,52)
Narração: as reações diante da prática de Jesus (11-12).
Discurso: As parábolas do Reino (13,1-52) – o mistério do Reino.
Quarta parte: O novo povo de Deus (13,53-18,35)
Narração: o seguimento de Jesus (13,53-17,27).
Discurso: A comunidade dos seguidores (18,1-35) – sinal do Reino.
Quinta parte: A vinda definitiva do Reino (19-25)
Narração: o Reino é para todos os que se converterem (19-23).
Discurso: a vigilância (24-25) – o futuro do Reino.
Conclusão: A páscoa da libertação (26-28).

5.      Principais mensagens do Evangelho de Mateus

No Evangelho de Mateus, Jesus é o Emanuel (Mt 1,23) e se faz presente na comunidade reunida em oração: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Ele garante a sua presença constante na vida das pessoas: “E eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mt 28,20). Jesus é o Mestre que nos convida a viver a justiça e a misericórdia! Com base em alguns textos exclusivos do Evangelho de Mateus, é possível entender o projeto das comunidades que receberam esse evangelho e alguns dos principais ensinamentos de Jesus transmitidos por elas e dirigidos também às nossas comunidades hoje.
  1. Jesus é o Messias das pessoas excluídas. Há vários séculos o povo judeu esperava pela vinda de um rei-messias poderoso, que viria para restaurar o reino de Israel. De acordo com essa expectativa, o reino judaico seria estabelecido pela intervenção de um Deus poderoso e castigador, por meio de um messias da linhagem de Davi e defensor da Lei oficial. A genealogia de Jesus o apresenta como o Messias de Deus e a plenitude das gerações (1,17), mas há uma surpresa: quatro mulheres estrangeiras são nomeadas nessa lista (Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias), algo não costumeiro nessas genealogias. Elas, junto com Maria, uma mulher grávida antes do casamento, eram consideradas impuras, segundo a Lei oficial. Ou seja, todas eram excluídas da sociedade judaica. Outro aspecto importante é que, na história pessoal de Jesus, podemos ler a história do povo de Israel. As gerações passam, mas a vida permanece e cada geração é responsável pela continuidade da vida. É Deus conosco, renovando o milagre da vida!

  1. Viver a justiça e a misericórdia (Mt 5,1-12). Seguindo as pegadas de Jesus, somos convocadas/os a assumir nosso compromisso com a construção de uma sociedade justa e solidária. No tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, escribas e fariseus pregavam e impunham a “teologia da retribuição”, que determinava quem era puro e feliz diante de Deus. Na esteira dessa teologia, as pessoas ricas e saudáveis eram vistas como justas, recompensadas por Deus por sua justiça, e as pessoas pobres, por sua vez, eram consideradas como culpadas por suas desgraças. A pobreza, a miséria e a esterilidade eram compreendidas como castigos de Deus às pessoas consideradas pecadoras e impuras. O critério para considerar uma pessoa justa ou injusta era a rigorosa observância da Lei, com os inúmeros impostos religiosos. Havia muita gente sem condições de observar a Lei e que mal sobreviviam no dia a dia. Jesus e as comunidades cristãs propõem uma inversão social: proclamam que os malditos pela sociedade injusta são os benditos de Deus.


  1. A prática do amor nos aproxima de Deus (Mt 6,1-6.16-18). As obras de piedade judaica – oração, esmola e jejum – eram fortemente incentivadas desde o século 5 a.C. e se tornaram meios para ganhar a salvação individual e a promoção pessoal. Na prática da esmola, os pobres foram transformados em objetos para adquirir “pontos” ou favores de Deus. As obras de piedade acabaram perdendo a sua finalidade de estabelecer e fortalecer a comunicação com Deus e com o próximo. Para Jesus, as obras da piedade estão a serviço da vida, e não a serviço da promoção pessoal e da hipocrisia.

  1. Cristo está presente na comunidade reunida (Mt 18,15-22). Após a destruição do templo de Jerusalém, os fariseus se organizaram na sinagoga. Aos poucos, esse grupo assumiu a observância rigorosa da Lei, tornando-se extremamente legalista, a ponto de expulsar os grupos dissidentes. Os encontros e a vida das comunidades estavam cada vez mais centrados na prática de rituais. Na oração das dezoito bênçãos, escritas nesse período, pede-se que os “nazareus” e os “minin” pereçam. Em meio à perseguição externa e aos conflitos internos, as comunidades de Mateus, seguidoras de Jesus de Nazaré, devem fortalecer a unidade para sobreviver. Nesse sentido, convém reforçar a importância do perdão, da sensibilidade e da prática concreta da solidariedade na comunidade. A correção fraterna e o perdão são fundamentais para consolidar a vida em comunidade.


  1. Jesus está presente nas pessoas marginalizadas (Mt 25,31-46). Os judeus do século I acreditavam na transformação do mundo por meio da intervenção de Deus, precedida por um momento de grandes tribulações e sofrimentos. Desde a chegada dos gregos, em 333 a.C., Israel sofre com as destruições e perseguições de seus inimigos. A vinda de um Messias iria instaurar o Reino de Deus, concedendo a vitória aos justos. As comunidades de Mateus também fazem a sua releitura do Juízo Final e apresentam Jesus, o Filho do homem, como rei e juiz de todas as nações, para separar as pessoas umas das outras, tendo como critério não a lei do puro e impuro, mas a nova justiça do Reino: a prática concreta do amor solidário. Dessa forma, as comunidades de Mateus trazem o julgamento final para o seu dia a dia: não devemos nos preocupar tanto com os sinais cósmicos, mas com o que fizermos hoje com os nossos irmãos pequeninos e injustiçados, pois esse será o critério para a salvação eterna.

Pisar no chão das comunidades de Mateus é um convite para entendermos o contexto da época, especialmente a intolerância e as rivalidades existentes entre as lideranças religiosas da época e as comunidades de Mateus. O Evangelho de Mateus é intolerante com as autoridades judaicas, apresentando-as como agentes do diabo (Mt 4,1-11; 12,34; 16,1-14; 19,3; 22,15.34). É preciso ir além desse conflito e perceber a insistência de Jesus na vivência da compaixão, do serviço mútuo e na resolução não violenta dos conflitos. Como discípulas e discípulos, sentemo-nos para aprender do Mestre a viver “a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mt 23,23).
Maria Antônia Marques
Assessora do Centro Bíblico Verbo e professora na Faculdade Dehoniana, em Taubaté, na Faculdade Católica de São José dos Campos, na Escola Dominicana e no Itesp, em São Paulo. E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br

Introdução do Evangelho de Lucas



Introdução
Os evangelhos têm a pretensão de mostrar que é na totalidade da vida de Jesus que encontramos salvação. Mais do que relatos de uma história, são testemunhos de fé. Seu ponto de partida é a experiência dos primeiros discípulos, que aderiram a Jesus e foram impactados pela vida, palavras e comportamento do homem de Nazaré; que sofreram o ruir de suas esperanças com a morte do mestre; e que reencontraram, em sua ressurreição, sentido e resposta para a existência.
É importante sublinhar que cada evangelho está referido a uma comunidade determinada. Cada autor narra a história de Jesus de um modo que faça sentido para a comunidade à qual escreve e que suscite nela a adesão à sua proposta do Cristo. Assim, os evangelhos não são neutros; pelo contrário, estão profundamente marcados pela fé da comunidade, bem como por seus desafios e crises. Neste artigo, refletiremos sobre alguns aspectos do Evangelho de Lucas que poderão nos ajudar em nosso caminho de seguimento de Cristo e em nossos esforços de evangelização. Nosso intuito é apresentar a mensagem central do terceiro evangelho, sublinhando seu caráter atual, de forma que a Palavra proclamada seja eficaz para o tempo presente.

1. A obra Lucana em seu projeto literário e teológico
O Evangelho de Lucas é uma proclamação do acontecido com Cristo Jesus e da salvação realizada por ele no mistério de sua encarnação, morte e ressurreição. É um manual de catequese, que ajuda no processo de iniciação e de reiniciação à fé. É fruto do esforço da Igreja depois de longo desenvolvimento da prática evangelizadora. Assim, apresenta as características de quem deseja se tornar discípulo missionário de Jesus e as exigências que lhe são feitas, tais como:
– a opção radical por Jesus e pela proposta do Reino, na qual é priorizada a vida plena para todos, sem discriminações ou privilégios;
– o ato de carregar a cruz como expressão do dom total de si mesmo a Deus, que significa assumir, com liberdade e responsabilidade, as consequências da opção por Cristo;
– o serviço à Palavra com docilidade pressurosa, percebendo os sinais dos tempos e a urgência do Reino de Deus;
– a oração pessoal e a vivência litúrgica como “espaços” privilegiados da experiência com o Cristo ressuscitado, que evangeliza o mundo atual mediante a ação do Espírito Santo nos discípulos missionários.
1.1 O autor e sua proposta
O autor do Evangelho de Lucas seria um convertido ao seguimento de Jesus, proveniente do ambiente da cultura helenista, pertencente à classe social alta, conhecedor da retórica grega e da exegese judaica e muito familiarizado com a versão grega do Antigo Testamento (LXX); um gentio que, entre os anos 80-85 d.C., escreve a comunidades cristãs fora de Israel (CASALEGNO, 2003, p. 235-240), que não entendem a cultura na qual surgiu a mensagem de Jesus. Sua intenção – explicitada no prólogo do evangelho: “para que conheças a solidez dos ensinamentos que recebestes” (Lc 1,4) – revela seu interesse de revigorar a fidelidade ao ensinamento e à prática transmitidos pela tradição apostólica e garantir a autenticidade da doutrina, mostrando que as práticas e os ensinamentos assumidos pelas comunidades de sua época estão enraizados no tempo de Jesus.
A perspectiva adotada pelo autor está em função da apresentação do cristianismo como uma continuidade e um desdobramento legítimos do judaísmo (cf. At 23,6; 24,21). O autor pretende afirmar que a salvação prometida a Israel e realizada em Jesus é transmitida pela corrente da tradição apostólica. Para isso, recolhe as tradições sobre o ministério de Jesus, reelabora-as e compõe uma catequese em duas partes, evangelho e Atos dos Apóstolos, cuja unidade é defendida pela maioria dos estudiosos do Novo Testamento (CASALEGNO, 2005, p. 29-32). Desse modo, o autor indica como as ações e as palavras de Jesus foram compreendidas e prolongadas por seus discípulos (GEORGE, 1982, p. 6).
O Evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos, em sua unidade literária e teológica, apresentam o caminho profético e salvador através do qual Deus Pai percorre um trajeto com a humanidade, inicialmente com o povo da aliança, depois por meio de Jesus e das primeiras comunidades de seus seguidores e, enfim, com cada geração, até a plenitude do Reino para todos preparado.
1.2 Seguir Jesus pelo caminho
Cada leitor de Lucas é, ao mesmo tempo, convidado e desafiado a percorrer esse caminho de salvação, a olhar retrospectivamente o caminhar da Palavra de Deus, presente nas promessas feitas a Israel, o caminhar de Jesus como realização dessas promessas e, por fim, o caminhar da Palavra proclamada pelos apóstolos na força do Espírito. Tais etapas estão intimamente relacionadas. Formam um único itinerário: o caminho da salvação realizada por Deus na história humana, que alcança os nossos tempos, nos interpela, nos dá sentido à existência e nos impele a aventurar-nos nessa travessia.
O tema do “caminho”, na obra lucana, qualifica a vida e a comunidade cristã. O uso do verbo “ir” (passar, caminhar), que aparece 51 vezes no evangelho e 37 nos Atos, confirma essa perspectiva. Esse verbo aparece tanto nos relatos da infância, para indicar que os pais de Jesus estão a caminho de Jerusalém (cf. 1,39; 2,3.41), como no final do episódio da sinagoga de Nazaré (cf. 4,30), na inauguração de sua pregação na Galileia (cf. 4,14-9,50).
Nos caminhos da Galileia, Jesus pregava e anunciava a Boa-Nova do Reino de Deus (cf. 8,1) por palavras e obras: por meio de parábolas que mostram como se deve ouvir a Palavra de Deus, dar-lhe atenção (cf. 8,4-21), e de ações que comprovavam ser ele o Messias (cf. 8,22-56). No sermão da planície, é apresentado como profeta, que traz uma mensagem de fraternidade, filiação, amor e misericórdia (cf. 6,12-49).
Em Lc 9,51, Jesus toma decididamente o caminho de Jerusalém (cf. 9,51-19,27), seguido por seus discípulos e grande multidão. Seu destino é Jerusalém, centro e símbolo do antigo povo de Deus, o coração de todas as expectativas e esperanças de Israel, onde morrerá para entrar na glória e, desse modo, cumprir todas as profecias a seu respeito (cf. 24,27).
No caminho para Jerusalém, além das instruções acerca das condições do seguimento (cf. 9,51-10,42), da oração (cf. 11,1-13) e das características do verdadeiro discípulo (FABRIS, 2006, p. 13) – para que os discípulos compreendam as implicações da mensagem de Jesus na práxis cotidiana –, é narrada a parábola que foi universalizada com o título de “o Bom Samaritano” (cf. 10,25-37). Nessa parábola, a vivência do seguimento de Jesus é a execução da vocação do ser humano expressa na totalidade das Escrituras, vocação que, em resumo, implica a tarefa de amar efetivamente a Deus e ao outro que nos interpela no caminho para a vida eterna.
No capítulo 15 do Evangelho de Lucas, encontramos três parábolas que tratam do tema da alegria em encontrar o que se havia perdido e nos revelam a maneira como Deus age – norma para a vida dos discípulos e da comunidade cristã. Prosseguindo o caminho, continuam as instruções sobre o uso dos bens (cf. Lc 16), sobre a espera vigilante do Filho do homem (cf. 17,22-37; 18,1-8; 19,11-27) e sobre a salvação e o perdão universais, oferecidos também aos excluídos e pecadores (cf. 17,11-19; 18,9-14; 19,1-10).
O último episódio da parte central do Evangelho de Lucas, a grande viagem de Jesus para Jerusalém, acontece na casa do chefe dos cobradores de impostos (cf. 19,1-10). Nesse ponto, mostra-se a opção por Jesus e o abandono do ídolo das riquezas. O relato mostra o processo de iniciação à fé realizado por Zaqueu. No início, ele demonstra um fascínio por Jesus, mas poderia ter se detido aí. A admiração por Jesus ainda não é uma adesão de vida aos propósitos do Reino. Foi a atitude de Jesus, contrária à da multidão, que levou Zaqueu a uma fé madura, com consequências práticas para a própria vida.
O caminhar de Jesus não termina com a chegada a Jerusalém e com a paixão que sofreu. Essa caminhada continua nas cenas seguintes após sua morte, com os discípulos de Emaús (cf. 24,28). Ela se conclui em Jerusalém, quando, reunido com os discípulos, Jesus sobe aos céus (cf. At 1,10-11) e derrama o seu Espírito sobre a Igreja (cf. At 2,32.35). Esta, por sua vez, continuará a “caminhar”. O protagonista dessa caminhada é, a partir de então, a “Palavra”, que será anunciada com intrepidez pelos apóstolos desde Jerusalém até os confins do mundo, conforme o programa apresentado em At 1,8.
1.3 Assumir com liberdade e responsabilidade as consequências da opção por Cristo
Pensar a vida e a comunidade cristã à luz da metáfora do caminho implica abertura a uma experiência dinâmica e progressiva, a uma aventura que brota do encontro com Jesus e da adesão à sua proposta: “Segue-me” (5,27). É ao longo desse caminho que cada discípulo, de ontem e de hoje, aprende do Senhor que o seguimento dele exige uma opção radical: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me” (9,23); aprende que, nesse percurso, pode encontrar acolhimento e hospitalidade, como na casa de Marta e Maria (cf. 10,38-42), mas também recusa e rejeição, como no território dos samaritanos (cf. 9,53).
O caminho de Jesus oferece riscos, não se amolda ao projeto de alguém que pretende viver um cristianismo light ou sonha com sucesso ou prestígio.
Seguir Jesus quer dizer ser fiel a alguém que é perseguido, que não tem seguranças sociais e familiares (9,57-62); uma pessoa que está sendo procurada pelo poder político como perigosa (13,31-32); alguém que é rejeitado pelos chefes e dirigentes religiosos (13,34) […]. É o caminho da fidelidade e da coragem, mesmo diante da repressão violenta das estruturas do poder, sinagogas e reis, mesmo perante a morte violenta (21,12) (FABRIS, 2006, p. 189; 202).
O agir cristão é um caminhar com Jesus cada dia, até a plena realização do propósito de Deus. Isso exige decisão firme, pois os discípulos estão vinculados ao caminho de Jesus e devem agir em conformidade com os ensinamentos e com a vida do Mestre. Desse modo, o caminhar com Cristo deve ser entendido como relacionamento profundo e íntimo com Deus, tendo consequências práticas na vida cotidiana. Desse modo, não há lugar para uma religiosidade intimista e subjetivista, sem experiência pessoal com o Deus misericordioso. O seguimento de Jesus consiste em adesão pessoal, comprometimento de vida, não apenas em crenças em formulações doutrinárias. Seus seguidores devem amar como ele amou, ter misericórdia como ele teve misericórdia, pois, com sua vida, palavras e comportamento, Jesus nos mostrou que essa atitude partia de Deus mesmo: “Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai” (Lc 6,36).
A seguir, refletiremos sobre o relato da manifestação de Jesus aos discípulos de Emaús, que, no caminho com Cristo ressuscitado, passam por um processo de reiniciação na fé. Eles vão do desânimo à esperança e da religião à experiência de fé, que consiste em uma adesão da própria vida ao projeto do Reino, celebrado e proclamado. Tornam-se discípulos e são investidos como missionários pelo Cristo ressuscitado, presente na caminhada, na Palavra e na liturgia. É bom exemplo de como podemos, hoje, reencantar os desencantados com o cristianismo.
2. O caminho para Emaús
O episódio do caminho para Emaús (cf. Lc 24,13-35), resumo da obra lucana, encontra-se no contexto da atividade de Jesus em Jerusalém (cf. 19,28-24,53), lugar onde acontece a plenificação da salvação operada em Cristo. O evangelista segue estruturando sua narrativa no contexto de uma caminhada e, como escreve na perspectiva da história da salvação, acentua a sucessão dos acontecimentos em um relato marcado por oposições e contrastes entre seu início e seu final, tanto no que diz respeito à situação – no início os discípulos estão saindo de Jerusalém (cf. v. 13) e, no final, retornam (cf. v. 33) – quanto o que toca à sua compreensão, passando da ignorância ao conhecimento: no início estão com os olhos impedidos de ver (cf. v. 16), no final estes se abrem e reconhecem Jesus (cf. v. 31) (SKA, 2001, p. 48-49).
Essa estrutura nos revela ser preocupação do autor a transmissão de uma experiência que é fundadora para a comunidade. Experiência que todo cristão deve fazer para seguir Jesus. O relato pode ser organizado em cinco partes, a saber: a) 13-16 – os discípulos se afastam, Jesus se aproxima, mas os olhos estão impedidos de reconhecê-lo; b) 17-24 – o diálogo de Jesus com os dois: frustração e desesperança; c) 25-27 – a longa explicação das Escrituras; d) 28-31 – o convite, a fração do pão e o reconhecimento: abertura dos olhos; e) 32-35 – à experiência do encontro com o Senhor segue o retorno para a comunidade.

No relato, a abertura das Escrituras constitui um divisor de águas no itinerário da fé pascal. Anteriormente, o acontecido com Jesus parecia incompreensível, mas quem conhece as Escrituras, quem as compreende bem, é capaz de perceber a lógica do agir de Deus na história. Por isso, Jesus repreende a lentidão dos discípulos em crer que ele ressuscitou. A explicação das Escrituras é essencial para compreender o evento Cristo. Os profetas dão testemunho da inevitabilidade da morte de Jesus e da entrada dele na glória do Pai (CASALEGNO, 2003, p. 195).

O processo de assimilação do acontecido com Jesus se realizou progressivamente, ao longo de uma caminhada de reflexão sobre as Escrituras à luz dos eventos pascais. Tal processo consistiu não apenas na abertura das Escrituras, mas também em longo percurso pela história de Jesus, considerando-a inserida na história do povo de Israel. Os discípulos releram toda a vida de Jesus à luz da páscoa, pois a ressurreição não tem sentido em si mesma, mas ganha sentido por meio da correspondência com o modo como Jesus viveu e morreu. Há íntima relação entre a vida, a morte e a ressurreição de Jesus.
No final da caminhada para Emaús, a meta foi atingida. Verdadeiramente o Senhor ressuscitou! E agora? O que fazer, senão retornar à comunidade? De fato, esse itinerário não teria sentido se não fosse partilhado, se não fizesse parte da experiência de uma comunidade. Por isso a urgência de retornar a Jerusalém para anunciar os acontecimentos do caminho, uma vez que essa experiência não é vivida isoladamente, mas em comunidade, junto àqueles que professam e vivem essa mesma fé no Ressuscitado.
A cidade de Jerusalém simboliza o lugar de irradiação da salvação. Não é simplesmente um lugar geográfico, mas sim teológico. Para Lucas, as nações todas não precisarão se dirigir a Jerusalém para obter a salvação. Ao contrário, é Jerusalém, simbolizada por cada cristão, que irá a cada nação anunciar a salvação realizada em Cristo. Cada cristão que realizou o percurso e reconheceu Jesus Cristo ressuscitado no final do caminho deve agora levar sua experiência às nações que anseiam pela libertação, verificada na vida concreta de todo aquele que adere a essa experiência.
Considerações finais
A partir da experiência com o Ressuscitado, os cristãos fizeram uma releitura da vida de Jesus, de seus gestos e de suas palavras e condensaram essa experiência nos evangelhos. Um dos objetivos principais dos relatos evangélicos é mostrar que o Ressuscitado não é outro senão o Nazareno, o Crucificado. Esse processo de releitura, na obra lucana, está expresso na narrativa de uma grande viagem que se apresenta como verdadeiro itinerário da experiência pascal.
No texto lucano, a grande viagem de Jesus a Jerusalém constitui um programa de catequese cujo objetivo é fazer que os discípulos possam compreender o plano salvífico de Deus. Assim, o relato da caminhada de Emaús torna-se uma catequese pascal, cujo ponto de partida é o evento Cristo. Portanto, para compreender a ressurreição de Jesus, é necessário vê-la em continuidade com sua vida e morte; ou seja, a história de Jesus não termina na cruz.
No processo de abertura dos olhos dos discípulos, a explicação das Escrituras torna-se indispensável. Ela prepara o terreno com suas sementes, cujos frutos serão colhidos mais tarde, na “fração do pão”. E as sementes lançadas despertam nos ouvintes o desejo de ser discípulos de Jesus, de se pôr a caminho com ele, de conhecê-lo mais intimamente, e para isso é necessário entrar na dinâmica do seguimento de Jesus e da opção por ele.
O ponto de partida da catequese pascal situa-se na realidade existencial das pessoas com as quais Jesus se encontra. Isso porque o conteúdo da fé cristã é a vida de Jesus e, por isso, tal fé somente poderia ser acolhida na situação existencial de cada pessoa e por meio da pertença à comunidade. Não obstante, mesmo partindo de uma situação existencial, a experiência com o Ressuscitado é sempre uma proposta. Esta vem de fora, pois é Jesus quem interpela as pessoas pela mediação da comunidade, a qual guarda e transmite o depósito da fé. A comunidade narra esse evento para que o ouvinte de todos os tempos se ponha a caminho, faça o mesmo percurso e se deixe interpelar pelo Senhor, como fizeram os discípulos.


Referências  bibliográficas
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